Saturday, February 23, 2008

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O filho de Estaline não teve uma vida fácil. O pai engendrou-o com uma mulher que, conforme tudo indica, acabou por mandar fuzilar. O jovem Estaline era, portanto, ao mesmo tempo, filho de Deus (porque o seu pai era venerado como Deus) e maldito por ele. As pessoas temiam-no duplamente: podia prejudicá-los tanto pelo poder que ainda tinha (sempre era o filho de Estaline) como pela sua amizade (o pai podia mandar castigar os amigos em vez do filho).
Maldição e privilégio, felicidade e infelicidade - nunca ninguém sentiu tanto na própria pele o ponto a que essas oposições são mutáveis e como é estreita a margem entre os dois pólos da existência humana.
Logo no princípio da guerra foi capturado pelos alemães e eis que outros prisioneiros, membros de uma nação pela qual sempre sentira uma antipatia visceral, porque lhe parecia incompreensivelmente fechada, o acusavam de ser porco. Ele, que carregava às costas o drama mais sublime que possa ser concebido (ser ao mesmo tempo filho de Deus e anjo caído em desgraça), tinha agora que suportar ser julgado, e não por coisas nobres (a respeito de Deus ou dos anjos), mas por causa de merda? O drama mais nobre e o incidente mais trivial estarão assim tão vertiginosamente próximos um do outro?
Vertiginosamente próximos? Então a proximidade também pode causar vertigens?
Claro que pode. Quando o pólo norte se aproximar do pólo sul quase a ponto de o tocar, o nosso planeta desaparecerá e o homem terá à sua volta um tal vazio que ficará aturdido e cederá à sedução da queda.
Se a maldição e o privilégio são uma e a mesma coisa, se não já diferenças entre o nobre e o vil, se o filho de Deus pode ser julgado por causa da merda, a existência humana perde as suas dimensões e torna-se de uma leveza insustentável. Então, o filho de Estaline corre em direcção ao arame farpado para lançar contra ele o corpo, como se estivesse a lançá-lo para o prato de uma balança que miseravelmente subisse soerguido pela infinita leveza de um mundo sem dimensões.
O filho de Estaline deu a vida pela merda. Mas morrer pela merda não é uma morte absurda. Os alemães sacrificaram a vida para aumentar o território do império para leste, os russos que morreram para que o poder do seu país se estendesse mais para ocidente, esses sim, morreram por um disparate e a sua morte não tem nem qualquer espécie de sentido nem de valor geral. Em contrapartida, a morte do filho de Estaline foi a única morte metafísica no meio da estupidez universal da guerra.

A insustentável leveza do ser -
Milan Kundera

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